E nasce a melhor época da música Brasileira, essa época que nunca passa e se multiplica.
Entre os acordes de uma nova era e os ruídos de um país em transformação, surgiu, em 1966, o Festival Internacional da Canção — conhecido como FIC. Muito mais do que uma competição musical, o evento se consolidou como um dos principais palcos de revelação de talentos, inovação artística e resistência poética em meio à ditadura militar brasileira.
Idealizado pela TV Globo, o FIC tinha um formato ousado: unir canções brasileiras e internacionais em um mesmo evento, transmitido para milhões de lares em plena ascensão da televisão. Ao longo de suas sete edições, entre 1966 e 1972, o festival não apenas lançou nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina e Nana Caymmi, mas também ajudou a moldar o que hoje conhecemos como Música Popular Brasileira (MPB).
Este artigo propõe uma viagem pelos bastidores, emoções e legados de cada edição do FIC. A partir de uma linha do tempo comentada, vamos entender como cada festival refletiu seu tempo, rompeu padrões e cravou sua marca na cultura nacional.
Prepare os ouvidos — e o coração — para reviver uma história que ainda ecoa nas rádios, playlists e memórias afetivas de todo o país.
O Nascimento do FIC e Seu Propósito
O ano era 1966. O Brasil atravessava uma fase de fortes transformações políticas e culturais. A ditadura militar se consolidava com censura e repressão, mas, nas entrelinhas da arte, a juventude encontrava uma forma potente de expressão: a música. Nesse cenário, a televisão ganhava força como principal meio de comunicação, e a TV Globo — ainda em seus primeiros anos — viu no momento uma oportunidade estratégica.
Inspirada pelo sucesso dos festivais da TV Record, como o Festival da Música Popular Brasileira, que já agitavam o eixo São Paulo-Rio, a Globo decidiu criar um festival próprio, com uma proposta ousada: o Festival Internacional da Canção (FIC). A ideia era ir além da cena nacional e promover uma competição que unisse compositores brasileiros e estrangeiros em um mesmo palco, projetando o Brasil como um centro musical global.
Enquanto a Record apostava no formato mais tradicional e “raiz” da música brasileira, o FIC ousava em estética, produção e escala. As finais aconteciam no Maracanãzinho, com orquestras, transmissão ao vivo e grande investimento em produção — um verdadeiro espetáculo televisivo.
Mas o propósito ia além do entretenimento. O FIC foi concebido como vitrine artística e também como uma ferramenta de posicionamento cultural e político. Ao dar espaço à nova geração de compositores e intérpretes, a TV Globo colaborava, ainda que indiretamente, para que a música se tornasse uma forma de resistência e renovação em tempos de incerteza.

O Formato Inovador: Nacional e Internacional
O Festival Internacional da Canção se diferenciava desde o início por sua proposta ambiciosa: unir a música brasileira à cena musical global em um mesmo evento. Em vez de concentrar-se apenas em composições nacionais — como faziam os festivais da Record — o FIC foi além, dividindo sua competição em duas fases distintas: uma nacional, dedicada a compositores e intérpretes brasileiros, e outra internacional, com artistas de vários países convidados.
Essa estrutura trazia ao palco uma diversidade sonora rara até então, colocando lado a lado a força lírica da MPB e as tendências mundiais da música pop, latina e europeia. As canções estrangeiras eram interpretadas por artistas brasileiros, muitas vezes em versões adaptadas para o português. Essa mistura criava um ambiente único, em que o público brasileiro entrava em contato com ritmos e estilos vindos de fora, ao mesmo tempo em que via nascer, ali, canções que se tornariam clássicos nacionais.
O formato também funcionava como uma espécie de vitrine diplomática. Em plena Guerra Fria, com o Brasil buscando estreitar laços com diversos países, o FIC cumpria um papel simbólico: mostrava o país como moderno, plural e culturalmente relevante. Era entretenimento, sim — mas também era política cultural.
A ousadia de fundir o nacional e o internacional fez do FIC um festival único. Foi essa fórmula que ajudou a consolidar sua identidade própria no panorama dos grandes festivais brasileiros, tornando-o memorável até hoje.
FIC 1966: A Primeira Edição e a Revelação de Nana Caymmi
A estreia do Festival Internacional da Canção, em 1966, marcou um divisor de águas na história da música brasileira. Ainda sob o olhar curioso do público e da crítica, o FIC já nasceu com porte grandioso: orquestras ao vivo, palcos imponentes e transmissão nacional. Mas foi no talento que ele realmente brilhou — e surpreendeu.
A grande vencedora da fase nacional foi a música “Saveiros”, de Dori Caymmi e Nelson Motta, interpretada por Nana Caymmi. Até então, Nana era um nome pouco conhecido fora dos círculos musicais mais atentos, e mesmo dentro deles, sua voz era vista com reservas — inclusive pelo próprio pai, Dorival Caymmi, que temia que a filha não estivesse pronta para os holofotes. Mas a apresentação de “Saveiros” mostrou o contrário.
A canção, com sua melodia suave e letra de poesia marítima, emocionou o público e os jurados. A interpretação contida e intensa de Nana revelou uma artista madura, pronta para ocupar seu lugar entre as grandes vozes do país. Apesar da recepção do público ter sido inicialmente fria — marcada até por vaias no Maracanãzinho — a vitória veio, e com ela, o reconhecimento que perdura até hoje.
Além de “Saveiros”, o festival também revelou outras músicas marcantes, como “Canção de Amor que Nasceu” de Baden Powell e Vinícius de Moraes, interpretada por Elza Soares, e “A Canção de Fim do Mundo”, de Paulinho Tapajós.
O FIC estreava, assim, com o pé direito: revelando talentos, surpreendendo expectativas e começando a escrever uma das mais belas páginas da música brasileira.
O FIC ao Longo dos Anos: Destaques e Transformações
Com o sucesso da primeira edição, o Festival Internacional da Canção ganhou fôlego e prestígio. Entre 1967 e 1972, o FIC não apenas consolidou seu lugar no calendário cultural brasileiro, como também acompanhou — e refletiu — as transformações do país. A cada ano, novos artistas, embates ideológicos e sonoridades emergiam do palco do Maracanãzinho.
Em 1967, o festival trouxe um momento emblemático: a vitória de “Margarida”, de Gutemberg Guarabyra, representou um frescor lírico, enquanto a apresentação incendiária de Caetano Veloso com “Alegria, Alegria”, fora de competição, deu o tom da contracultura que estava por vir. O movimento tropicalista começava a despontar, misturando guitarras elétricas com samba, baião e crítica social.
1968 ficou marcado pela explosão de Gilberto Gil com “Questão de Ordem”, música que foi vaiada pela plateia mais conservadora, mas que se tornaria símbolo de uma juventude ousada e politizada. A tensão entre inovação e tradição era sentida em cada edição — e o FIC era o palco onde essa tensão se encenava em forma de música.
Nos anos seguintes, surgiram clássicos como “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores” de Geraldo Vandré (que causou polêmica mesmo fora do FIC) e “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, que venceu em 1968 em meio a vaias apaixonadas — um retrato do momento político turbulento.

A partir de 1970, o festival passou a apostar mais em canções de apelo popular e nas grandes produções. O tom politizado deu lugar a uma estética mais voltada ao espetáculo. Ainda assim, o FIC continuou revelando talentos, como Os Mutantes, Milton Nascimento, Belchior e muitos outros.
Em 1972, o festival chegou à sua última edição. O clima cultural já era outro: a censura mais forte, o desgaste do formato e as mudanças no mercado fonográfico contribuíram para o encerramento. Mas o legado já estava consolidado — o FIC havia cumprido sua missão de transformar a música brasileira.
O FIC e a Ditadura: Censura, Resistência e Contradições
Nenhum festival da música brasileira dos anos 60 e 70 escapou do contexto político da época — e com o FIC não foi diferente. O Brasil vivia sob uma ditadura militar que, apesar de inicialmente permitir alguma abertura cultural, endureceu a repressão a partir do AI-5, em 1968. Nesse cenário, a música popular se tornou um espaço de resistência, mas também de tensões e contradições.
O Festival Internacional da Canção, transmitido em rede nacional pela TV Globo e com apoio governamental indireto, ocupava uma posição ambígua. De um lado, funcionava como uma vitrine artística importante para novos compositores e intérpretes. De outro, era também vigiado de perto pelos órgãos de censura — e por vezes acusado de colaborar com o regime ao promover uma imagem “harmoniosa” do país.
Essa dualidade gerou momentos históricos. Em 1968, Chico Buarque e Tom Jobim venceram com “Sabiá”, uma canção delicada, mas que muitos viam como evasiva diante da conjuntura política. A plateia, que esperava a vitória de Geraldo Vandré com sua incisiva “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, reagiu com vaias intensas — um dos episódios mais emblemáticos da história dos festivais.
Artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Edu Lobo usaram o palco do FIC para expressar críticas veladas e metáforas ousadas. A censura estava atenta, mas muitas mensagens passavam pelo filtro oficial disfarçadas de poesia ou abstração sonora.
O FIC, assim, tornou-se também um campo de disputa: entre o desejo de liberdade artística e os limites impostos pela repressão. Foi palco de resistência simbólica, onde se dançava com cuidado sobre o fino fio da liberdade de expressão.
Legado Musical: Canções que Entraram para a História
O Festival Internacional da Canção não foi apenas um evento — foi uma usina de clássicos. Muitas das músicas que hoje fazem parte do imaginário coletivo brasileiro tiveram sua estreia ou consagração no palco do FIC. Essas canções ultrapassaram o tempo, os palcos e os contextos políticos, tornando-se patrimônio cultural.
A já citada “Saveiros”, de Dori Caymmi e Nelson Motta, abriu os caminhos com sua poética marítima. Mas vieram muitas outras. Em 1967, por exemplo, “Margarida”, de Gutemberg Guarabyra, encantou pela delicadeza e originalidade. Já em 1968, “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, apesar das vaias, consolidou-se como uma obra-prima lírica sobre saudade, exílio e identidade.
Outras canções não venceram, mas conquistaram o público e se eternizaram. Foi o caso de “Travessia”, de Milton Nascimento e Fernando Brant (que brilhou no Festival da Record, mas o autor também passou pelo FIC), e “Canção do Amor que Nasceu”, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, com Elza Soares. Algumas dessas obras eram quase profecias do Brasil que estava por vir — como “Questão de Ordem”, de Gilberto Gil, desafiando o conservadorismo com ironia afiada e som vanguardista.
Além disso, o FIC permitiu o surgimento de tendências e experimentações sonoras. Músicas com arranjos mais ousados, mistura de gêneros e fusões de ritmos regionais com elementos internacionais começaram a ganhar espaço. Isso refletiu diretamente no desenvolvimento da MPB e abriu portas para os movimentos do tropicalismo e da música psicodélica brasileira.
O festival também ajudou a moldar o gosto popular e o mercado musical. Muitas gravadoras passaram a investir em nomes revelados no FIC. Para os artistas, participar — e vencer — significava visibilidade nacional e oportunidades concretas de carreira.
No fim das contas, o FIC não foi apenas um evento musical. Ele foi um ponto de inflexão: entre o tradicional e o moderno, o regional e o global, o silêncio e a resistência. E suas canções continuam ecoando — nas rádios, nos livros, nos palcos e, claro, na memória afetiva de gerações.

O Fim do FIC e a Força de Seu Legado
Em 1972, após sete edições, o Festival Internacional da Canção chegou ao fim. O que parecia um evento consolidado, com grande audiência e impacto cultural, foi encerrado de forma silenciosa, quase melancólica. Mas os motivos por trás desse fim revelam muito sobre o momento em que o Brasil vivia — e sobre as transformações na própria indústria da música.
Por um lado, o cenário político estava ainda mais fechado. O endurecimento da ditadura após o AI-5 reduziu os espaços de crítica e contestação. A censura tornou-se mais agressiva, e a televisão — inclusive a TV Globo — passou a operar sob vigilância constante. O ambiente que antes permitia metáforas e ousadias poéticas tornava-se sufocante.
Por outro lado, o próprio formato dos festivais já dava sinais de desgaste. As disputas acirradas entre torcida e júri, as vaias organizadas e os episódios de censura ou manipulação minaram a credibilidade do evento. Muitos artistas que haviam despontado nos festivais começaram a seguir caminhos próprios, com carreiras consolidadas fora da lógica competitiva.
Além disso, o mercado fonográfico passava por mudanças. As gravadoras investiam mais em discos conceituais, álbuns autorais e projetos fora do universo dos festivais. A estética dos anos 70 caminhava para um som mais introspectivo, mais maduro e menos “festivo” — e o FIC, com sua estrutura grandiosa e formato internacional, já não se encaixava tão bem nesse novo contexto.
Mesmo assim, o fim do festival não apagou sua importância. Pelo contrário: o FIC entrou para a história como uma vitrine poderosa de talentos, ideias e experimentações. Foi responsável por revelar nomes como Milton Nascimento, Gonzaguinha, Belchior, Nana Caymmi, Os Mutantes, Gal Costa, entre muitos outros. Criou clássicos, provocou debates, desafiou limites — e ajudou a construir a identidade da música popular brasileira moderna.
Hoje, revisitar o FIC é também revisitar um Brasil vibrante, contraditório e criativo. Um país que, mesmo sob repressão, soube cantar, resistir e transformar sua dor em arte.
O FIC Ainda Ecoa
Mais do que um festival de música, o Festival Internacional da Canção foi um espelho de seu tempo. Refletiu os sonhos, os conflitos e as contradições de um Brasil em transformação — político, cultural e musicalmente. Em meio à repressão, ousou dar palco à liberdade. Em tempos de silêncio imposto, amplificou vozes que até hoje ressoam.
O FIC revelou talentos, eternizou canções e ajudou a moldar a Música Popular Brasileira tal como a conhecemos. Sua influência segue viva em documentários, biografias, regravações e na memória afetiva de quem viveu (ou descobriu depois) aquele tempo em que a música era um ato de coragem e criação.
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